O país dos interditos convive mal com movimentos de câmara lenta. O rumor surdo da perplexidade traduz as reticências de regra. Afinal, o que é que leva dois autores consagrados, Armando Silva Carvalho e Maria Velho da Costa, nascidos ambos em 1938, à desabusada escavação da infância? Por que é que, sem perder Laclos de vista, foram ambos induzidos à narrativa da intriga? Valmont e a Merteuil trocaram o castelo de Madame de Rosemond pelo British Quintal? (O British Quintal é o jardim da casa de Maria Velho da Costa.) Pergunta ela: «E que fizemos à Merteuil e ao Visconde? / Devem ter-se tolhido com a tua abominação da aristocracia, a querela de classes, o Terror.» A questão não é inocente. E o protocolo não engana: nos interstícios do passado insinua-se a prova do quotidiano. Leitura do mundo: obras, autores, prémios, família, castas, ódios, equívocos, querela, política, dinheiro. O Meio à lupa, sem licença, entre 4 de Fevereiro e 29 de Junho do ano em curso. Tão simples como isto. Romance epistolar? Ou romance realista? Ele: «Ensaiemos, pois, em silêncio, o percurso do nosso dueto, a ouvir o Scarlatti.» Ela: «Há anos que me despeço da Literatura. Perdi o impulso, receio o tumulto.» Ele vem da pequena burguesia rural, do tempo em que todos se roçavam para chegar a Rousseau, mas, ainda rapaz, tinha ou julgou ter «outras Luzes guias, outros holofotes virados para as bandas do colectivo.» Valmont também conquistou o seu destino, e há-de ter lido O Contrato Social. Ela vem da burguesia instalada no Ancien Régime, viu mundo, o lusco-fusco do British Quintal ajuda-a a enfrentar o passado: «Os afectos são flutuantes. É o que os torna perigosos. Mesmo no seio da família, ou pior ainda. Quem diria que, depois de amar tão apaixonadamente os meus, poderia ir até à aversão? Que mutila. O ódio mutila.» Pai militar, «bisonho e frugal», mãe amante do luxo: «Perfumes, jóias, sedas, peles, comida requintada. E de dançar e de sair.» Ele a brincar aos padres em Olho Marinho: «O padre foi, aliás, na panóplia de seres que andavam à volta dos meus anos tenríssimos, o meu homem de saias.» Lenta descoberta da sexualidade num tempo em que «o sexo não existia em lado nenhum do corpo que a gente desse por isso.» Ela no Bairro Azul. Ele numa «província abaixo da meia-tigela [...] e não me peca a alma ao dizer que tinha costeleta de porco uma vez por semana após a missa. Outros comeriam feijões, pão duro, e quando.» Nítidas, as origens. A mnemónica deixa cicatrizes. O rapaz veio para a cidade, estudar e fazer pela vida. A rapariga não esqueceu o crivo apertado do Palácio das Madres, feudo das “Grandes”, um dia libertou-se e percebeu: «É toda uma cópia de contrastes, esta vida.» Muita água passou sob as pontes. Estão sentados no British Quintal, fazem parte do Meio, não há como fugir ao Meio, são consequência do Meio. Ela não poupa no desdém: «Há pouca gente tão ignara e arrogante como esses oxfordinhos de segunda. Cheios de mofo daqueles departamentos que fenecem, daqueles parques infantis para adultos, que consentem, salvo raras excepções entrincheiradas na excentricidade, dar diplomas a medíocres que seriam, na Sorbonne ou no MIT, mandados de volta à instrução primária.» Ele, sem sair da mesma área sociológica, tem o seu quinhão. Uma afirmação de Maria Filomena Mónica [«As relações entre uma patroa, especialmente de esquerda, e uma empregada doméstica são complexas.»] dá o mote: «Frase tão incrível como os anúncios de sexo regressivo [...] que descobres na nossa circunspecta imprensa.» Exemplo entre muitos. Isento de vénia ou cálculo, paralelo ao enredo da infância, o fio dos dias flui com naturalidade: escritores, artistas, cinema, jornais, colunistas, televisão, amigos, passeios, humor, tudo é pretexto. Pode ser o brutal assassinato de Gisberta: «Em Finsbury Park [...] vi uma vez duas pegas, lustrosas de branco e preto, a despedaçarem no chão um pombo ainda vivo. Quis ao menos enxotá-las e acabar de o matar. Foi-me dito que elas gostam de levar carne viva para o ninho. Lembrei-me muito deste episódio, a propósito do caso Gisberta, o transsexual assassinado por garotos no Porto.» Pode ser um dos legítimos inferiores, dando azo a comentários e trocadilhos. O homem é o estilo: «os tiques que se tornaram famosos e vendidos por esse mundo fora, traduzidos, sei lá, em judaico, alemão, grego ou paquistanês. Não é tanto os -inhos do sentimentalóide, esse celulóide da prosa [...] o arfar da sorna suburbana, com Donas Idálias e cantores larilas.» O estilo fixa-se em edições “ne varietur” para pasmo dos indígenas: «pobre A. L. A. que não tem culpa que lhe andem a fazer edições menos avariadas que a cabeça.» A mediocridade não tem perdão. Os melhores são citados com acerto e lembrados com empatia. Casos de Sophia, Sena, Agustina, Cesariny, Fiama, Herberto, Llansol, Drummond, Luiza Neto Jorge, António Ramos Rosa, Álvaro Lapa, Margarida Gil, João César Monteiro, Manoel de Oliveira, Eduardo Lourenço, Nuno Bragança, José Cardoso Pires, Pedro Tamen, Ruy Belo, Manuel Gusmão, poucos mais. As bêtes noires comuns? Bénard da Costa e Vasco Pulido Valente preenchem a quota. Sim, também há uma académica, «a Nossa Académica», oriunda da outra banda: «Veio de barco à conquista de Lisboa. Estudou, estruturou, e de ática a catedrática foi um pulo. Barthesiana enquanto lhe rendeu o discurso, hoje o seu retiro impressiona. É grandiloquente. E quem lhe beija a mão sabe bem como ela morde.» E ainda uma embaixatriz, «a Nossa Embaixatriz», oriunda do Instituto Camões, e uma psicóloga oriunda da coterie de Natália Correia, «a Nossa Psicóloga». Bem como um energúmeno, «o Energúmeno», um dos da pior espécie, «culto, académico, talento multifacetado.» Os menores não têm direito a nome. Os novos não são esquecidos: «A jovem cultura portuguesa é só prodígios.» Certa dose de acrimónia contra os convénios de casta: «Há dias folheei um livrinho cínico e galante, de um menino bem, um pretty boy, a falar da sua adolescência, vivida nos braços das artes e nos deleites do antes, durante e pós-coital. Autor: o inefável Frederico Lourenço, esse tão celebrado tradutor dos velhos gregos. O pai dele, o M. S. Lourenço, um homem requintado das filosofias, amante da palavra, do mito e da pergunta, andou comigo na recruta em Mafra e chamava-me o sapador suicida.» Aferidor do quotidiano, Eduardo Prado Coelho surge amiúde: «Hoje o E. P. C. parece que me adivinhou. E zás: diz que não é toureiro, não senhor, mas dá umas trancadas nessa coisa obnóxia dos papás avaliarem os professores dos seus rebentos. E por sinal até escreve que essas encantadoras crianças tratam as professoras de putas, lhes atiram preservativos à cara e as fecham nas salas de aula.» De passagem, ponto final nas Novas Cartas Portuguesas, despachadas como inócuas: «um hímen colectivo, um coral fêmeo a bufar no macho.» Em todo o caso, o maldizer é mero parêntesis na crónica da infância. Barthes, apropriadamente citado, disse: «a minha infância é que mais me fascina [...] o que descubro nela não é o irreversível, é o irredutível [...] a emoção interna, mas isenta de qualquer expressão pela sua própria desgraça.» É essa a matriz do livro, a que um conjunto de três dezenas de retratos dos autores enquanto crianças acrescenta um suplemento de “realidade”. O que estas imagens nos dizem é que a fotografia não é um corpo neutro na dinâmica da obra. Quem conheça a obra dos co-autores encontra aqui um prolongamento das obsessões de ambos. O Armando Silva Carvalho de Portuguex (romance, 1977) ou de Elena e as Mãos dos Homens (contos, 2003) plasma-se na prosa sacudida desta “correspondência”. O mesmo se diga de Maria Velho da Costa, operando em flashback. Ouvindo-a discorrer sobre o rito de passagem que representou o Palácio das Madres, somos levados a recordar episódios do primeiro livro, Lugar Comum (contos, 1966), ou mesmo daquele Maina Mendes (romance, 1969) que definitivamente a consagrou. No seu desconstruir metódico, O Livro do Meio põe a nu a tensão dialógica que as obras respectivas estabelecem entre si. Uma mais-valia nada despicienda, convenhamos.
A Infância, os Outros, in MIL FOLHAS, 24-11-2006, p. 10.
quinta-feira, 28 de agosto de 2008
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