O UROGALO
O urogalo vive solitário e livre
entoa um canto triste de que vive
e morre se não canta mas se canta
atrai o caçador que lhe dá morte
É ave vive sobre a morte e cai quando o seu canto
lhe aviva a vida que lhe causa a morte
Não sei que ave é o urogalo
e se o vi só o vi numa fotografia vista
na contracapa de uma certa revista
Só sei que vive solitário e livre
e sei que a solidão e a liberdade
são condição de vida para quem
quer erguer a cabeça sobre a morte viva ou morte morta
O urogalo canta solitário e triste
resiste à morte apenas porque canta
o canto é perigoso pode ouvi-lo o caçador
mas porque canta leva a cabeça erguida
e apenas o perigo dá sentido à vida
Virá o caçador acabará o canto
mas sente-se viver e não importa a morte
a quem ameaçado ameaça no entanto
porque o canto mortífero dá vida
O urogalo vive solitário e livre e
a solidão e a liberdade condição de vida
podem custar a vida àquele que vive
Mas isso não importa importa só
precisamente isso e nada mais que isso
que seja solitário e seja livre e assim viva
a vida de quem vive não de quem vegeta
e que o seu coração seja capaz da solidão
e que levante o canto em liberdade
e que ao cantar a solidão seja cidade
Ruy Belo, in «Transporte no Tempo» (1973)
Na minha juventude antes de ter saído
Da casa de meus pais disposto a viajar
Eu conhecia já o rebentar do mar
Das páginas dos livros que já tinha lido
Chegava o mês de Maio era tudo florido
O rolo das manhãs punha-se a circular
E era só ouvir o sonhador falar
Da vida como se ela houvesse acontecido
E tudo se passava numa outra vida
E havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer
Só sei que tinha o poder duma criança
Entre as coisas e mim havia vizinhança
E tudo era possível era só querer
Ruy Belo
sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009
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